quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

A menina que um dia eu fui


O sonho de meu pai era que eu aprendesse a tocar piano. E isso se aprende desde menina. Não sei se pela melodia, se pelo título de pianista, que era a palavra mais linda que ele achava. Todas as tardes, lá ia eu ter aulas com a professora. Era um ritual mágico e lindo. Muitas vezes via meu pai olhando escondido na janela. Não sei se era apenas para vigiar e descobrir se eu tinha ido mesmo à aula, ou se ele apenas queria me ouvir tocar.
Tenho saudades daquela menina que atravessava a cidade para aprender a tocar, e que murmurava baixinho, vezes sem conta, que queria ser uma boa escritora. Fechavas os olhos e desejava isso, mais do que tudo. Queria contar histórias para as pessoas sonharem. Eu tinha a certeza de que com minhas palavras abraçaria o mundo.
Um dia, a professora deixou de ensinar. Herdei o piano e as partituras. Mas, sonhava com as letras e as palavras.
Com os dias o piano ficou no canto da sala esquecido. Achei que meu pai brigaria, mas não, foi a primeira vez que ele percebeu que eu amava música, só que não podia tocar. Quando ouço tocar uma música parece que tudo para e só existe ela. Nesse momento eu volto a ser aquela menina que desejava ser uma grande escritora, e que tocava piano para fazer sorrir o pai.
O piano sentia falta das notas e de mim, meu pai dizia. Porém, eu estava liberta do sonho dele. Olho o piano e lembro-me da menina que um dia eu fui e que queria apenas escrever histórias. Hoje, cresci e o sonho começa a desenhar caminhos.
Continuo a ouvir a música e o piano apenas me assiste a escrever. Hora de dar um destino a ele. Pego o telefone e ligo para um jornal de classificados e ofereço um piano para venda. Percebo que nesse momento ele vibra como se concordando com o verbo viver.
Dentro de mim as palavras brotam e assemelha-se a um pássaro, a música libertou o piano, mas o mundo me prendeu.

Mariana Gouveia

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